As baleias somos nós

É sempre difícil, para quem tem de tomar a decisão de dar o alerta, conseguir que a prevenção da catástrofe não se torne uma catástrofe antecipada. Já vi isto em alarmes de falsos tsunamis e em alguns simulacros de incêndio, mas julgo que é sempre preferível correr o risco de algum alarme social preventivo, do que nada fazer e depois ter de lidar com os efeitos resultantes da falta de aviso. Quando, em muitos casos, já não vamos a tempo de fazer nada.

As nossas forças de segurança sentiram necessidade de dar um alerta generalizado a que os media, sensibilizados pelo tema, deram uma ampliação mediática pouco usual em questões destas, de mais um perigo público para os mais jovens que chega através das famosas redes sociais. Quem me conhece sabe que me pelo por dar o devido destaque a todos os malefícios com origem nas redes sociais, a que apenas reconheço utilidade em termos estritamente profissionais. Mas neste caso de hoje sou o primeiro a dar a mão à palmatória: embora utilizem as redes sociais como veículo privilegiado, os predadores do novo jogo suicidário conhecido por Baleia Azul contam mais com o nosso “apoio”, do que com as virtualidades da Internet.

Lamento reconhecê-lo, mas as baleias somos nós. Há muitos malucos e muitos perigos à solta nas redes sociais e há muitos aldrabões e contadores de estórias na net que constituem verdadeiras armadilhas para crianças e jovens incautos, cuja principal fragilidade advém exatamente dessa sua natureza infantil ou imberbe. Estes perigos têm estas novas ferramentas e formas de divulgação, que pedem igualmente outras formas e meios de prevenção, mas “mutatis mutandis”, são os perigos de sempre. Também nos meus tempos de criança existiam os adultos desconhecidos que nos queriam oferecer chocolates à saída da escola, ou outro tipo de “chocolate” à porta do liceu. Como me lembro do famoso jogo da bolha, que teve metade dos meus colegas do quinto ano (agora nono) a pensar que iam passar umas férias de sonho, graças a umas listas de nomes em que só era suposto pagar uma vez e depois receber muitas. Já neste caso da Baleia Azul, não chega ser jovem ingénuo, imberbe ou incauto. Conhecidos os pormenores e detalhes verdadeiramente horripilantes das várias fases e facetas deste suposto “jogo”, percebe-se que uma criança equilibrada, no seu juízo normal, mesmo para a sua idade, dificilmente se deixará enganar ou seduzir por uma idiotice destas, que às tantas lhe pede que se automutile em nome de nada que se perceba, nem de ninguém que se entenda. Como aliás tem sido demonstrado pelos casos conhecidos já registados, o terreno fértil onde se encontram as vítimas deste crime inventado, ao que se sabe, por um jovem russo que já terá sido detido, está nas crianças de famílias desestruturadas, como agora se chamam, altamente vulneráveis e desequilibradas por uma educação (ou mais até a falta dela) que não se inscreve em qualquer dos cânones habituais da nossa civilização. Crianças que os pais nunca quiseram, abandonaram literalmente ou abandonam todos os dias numa indiferença e afastamento generalizados.

Que nunca ouvem dos pais uma palavra de apoio, nunca sentiram um ombro amigo, nem um momento de carinho. Que estão de mal com a vida porque estão de mal com o Mundo. Desde logo com esse seu mundo de afetos, que sendo um micromundo é para cada criança o seu mundo maior. Numa sociedade organizada como nossa, quando os pais falham, a sociedade tem de saber estar à altura, usando o dinheiro dos impostos e dos donativos para acolher e acarinhar as suas crianças abandonadas, dando tudo para se aproximar desse objetivo impossível que é substituir os pais.

Quando alguma criança morre por causa de um jogo destes, a culpa não é dela nem de nenhuma baleia azul cibernética. A culpa é de todos nós, que falhamos como sociedade. Infelizmente vamos ter notícias de mais falhanços. Era bom que cada um de nós fizesse o que está ao seu alcance para que estes falhanços sejam cada vez menos notícia.

Por Manuel Serrão

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